quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Embromation

Conversando com a Mina há pouco no ponto de ônibus, me veio um post à cabeça sobre algo que ainda não foi contado e acaba surpreendendo alguns amigos que vêm nos visitar: as expressões idiomáticas. Sabe quando a gente acha ridículo aquela pessoa que passou um tempo fora do Brasil e volta falando palavras em inglês no meio das frases ou dizendo que esqueceu como se fala tal palavra ou expressão em português? Pois não é fingimento! Com o tempo, algumas palavras que usamos muito acabam sendo substituídas e aí fica mesmo difícil se adaptar a falar como antes.

Pra começar: no início, parece ótima a ideia de conversar em português porque ninguém vai entender. Ledo engano. Vale contar a história da nossa amiga, feliz da vida, visitando Londres, em uma boate. Viu o barman sem camisa e começou: "Nossa, olha o corpo dele... que peitoral é esse... gente, ele é muito gato... que sorriso... ai, viu esse olhar que ele deu??". Pois bem, 5 minutos depois o mesmo barman pergunta: "Querem que eu tire uma foto de vocês?". Detalhe: em português. Já aprendemos que é bom tomar cuidado, pois tem sempre um brasileiro, português ou até alguém de Cabo Verde no mesmo lugar, que vai entender o que você está dizendo.

Outro erro clássico de principiantes: falar em português normalmente, sabendo que as pessoas ao redor são de outro lugar. Mas esquecendo que os nomes dos países são parecidos. Ou seja... falar de indianos ao lado de indianos é passível de entendimento porque "indiano" e "indian" ou "India" são palavras muito parecidas. Assim, temos que aprender a substituir, apesar de ficarem conversas mais longas. Os indianos viraram "grupo étnico". Hoje, indagando sobre os homens no ponto de ônibus, falamos sobre eles serem "do mesmo continente que o nosso" (bolivianos) ou "daquele continente dos olhos puxados" (Ásia), talvez "daquele país que teve guerra contra os Estados Unidos" (Vietnã).

Já sobre as palavras que a gente troca, fica até engraçado. A maioria é em relação ao trabalho. Nunca mais falamos que "o restaurante está cheio"... virou "o restaurante está busy". Ou falar sobre em que turno vamos trabalhar. Não é mais "turno", é "shift". E quando trabalhamos dois no mesmo dia, "double shift". O gerente já virou "manager", as libras viraram "pounds" e carregar o celular ou o cartão do metrô é fazer "top up". Isso além das palavras que transformamos em verbos em português... passar o esfregão é "mopar". Acaba virando uma nova língua.

Outra coisa engraçada que acontece: quando usamos uma expressão em inglês no meio da frase, é muito difícil continuar a frase em português. Exemplo: falaríamos "assisti ao filme 'An Education' hoje", mas sai "assisti ao filme 'An Education' today". E a Mina responde: "Ah, esse 'An Education', yes... é bom".

E como se já não bastasse tanta mistura, ainda temos o ambiente de trabalho, onde existe a necessidade de se falar mal dos colegas preguiçosos, especialmente chefes. E aí entram as palavras em outras línguas que determinadas pessoas não vão entender, especialmente palavrões em italiano como "cazzo". Mas talvez a expressão mais divertida utilizada por nós aqui seja, e essa foi inventada pela Bianca, nossa amiga, e é universal: post-it. Sim, o papelzinho amarelo de colar recados. A história é a seguinte: Bianca, bêbada, teve a "genial ideia" de colar post-its nas pessoas interessantes com o número do nosso telefone. Phil, sóbrio, não achou que seria uma ideia tão boa. Mas a ideia tão criativa e engraçada pegou. Assim, ao avistar qualquer ser humano "pegável", ou seja, atraente, soltamos: "post-it!". E com o tempo, vieram as variações. "Post-it ish" significa que é quase pegável, caso a ser pensado ("ish" é usado depois de qualquer palavra para dizer que é "mais ou menos", "ao redor de", "quase", etc). "Clips" é quando não ficaríamos de forma alguma. E "cartolina" é alguém tão fenomenal que post-its não seriam suficientes - e até hoje só foi usada uma vez.

E já que o assunto é conversa, vale ainda contar o que anda acontecendo com Mina e Phil: discussões intermináveis sobre os mais variados assuntos. Não no sentido de briga, mas no sentido de conversas quase filosóficas que vão desde o fato do gosto do purê de batatas estar diferente até o fato de os pombos de Londres piarem muito alto. O problema é que o limite do normal é às vezes extrapolado, como uma conversa de meia-hora, às 4 da manhã, sobre valer a pena ou não comprar um carro em Londres. Sendo que nenhum dos dois dirige e muito menos pensa em comprar um carro agora.

No final, parece conversa de gente maluca. E é.

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Phil's Anatomy

Para começar o post: não é desculpa, mas serve como uma certa justificativa... o blog anda parado devido ao alto índice de visitas a Londres. Claro que amamos o blog, mas amamos ainda mais os nossos amigos que resolvem nos visitar, e como eles têm sido numerosos, falta tempo para pensar, sentar e escrever.

Agora indo ao assunto principal: como bons jornalistas que somos, decidimos investigar cada aspecto de morar em um lugar como Londres. E o sistema de saúde está entre eles. Por isso, Phil serviu como cobaia - já que tem a saúde mais debilitada que a da Mina (apesar de o fígado dele provavelmente estar melhor que o dela).

Tudo começou com uma estranha dor no estômago. A dor incomodava, incomodava e vinham os
palpites: "Devem ser gases", diz aquela tia velha em forma de consciência. "Toma um chazinho que ajuda", sugere a portuguesa que trabalha conosco. "Diminui o refrigerante", se mete alguém aleatório ouvindo a conversa alheia. E toma-lhe remédio para gases, chá e força de vontade para não beber Coca-cola. E nada da dor passar. Dois dias depois, já com uma intensidade maior, o Phil resolve viver a experiência de ir a um hospital londrino.

O prédio, todo espelhado e obviamente novo, fica em uma região central. A sala de espera daemergência é repleta de cadeiras acolchoadas, máquina de chocolate, máquina de água e uma TV de plasma digital. Álcool em gel para passar nas mãos, banheiro e recepção protegida por vidros. Phil acha que errou de lugar e foi parar em uma clínica dermatológica particular. 15 minutos depois, ele é atendido. Uau! Primeiro mundo! Um enfermeiro o examina e faz perguntas de praxe sobre outros sintomas. Ao final, responde: "Não sei o que você tem, mas vou te receitar esses analgésicos e você pode ir para casa". Primeiro mundo, uma ova! Analgésicos sendo receitados sem que se descubra a causa da dor.

Após uma noite horrenda, mesmo a base de paracetamol, Phil acorda sem aguentar de dor, mal conseguindo andar. Mina já está no trabalho. Phil pede ajuda para Elaine, até então nossa housemate (que já deixou a casa e foi substituída por um menino grego que agora mora conosco, mas ainda não produziu nenhuma história relevante que mereça um post). Phil parte para o hospital perto de casa. O prédio é mais antigo, mas todo arborizado, jardim cuidado e impecavelmente limpo. A emergência se parece mais com algo já visto: muita gente, pessoas passando mal, funcionários públicos entediados. Depois de cerca de 40 minutos, Phil é atendido pela primeira vez e começam os exames. Sangue, urina, pressão. Após algumas horas, chega o primeiro médico da aventura dolorosa.

A suspeita era de pedra na vesícula, o que provavelmente resultaria em cirurgia, mas o que seria improvável (porém possível) devido à idade do Phil. Mas a má notícia que cai como uma bomba: Phil terá que dormir no hospital. Na cama da emergência, o desconforto é grande, mesmo com a presença da Mina e duas malas preenchidas com laptop, caixa de DVDs, roupas, twix, cream craker, carregador de celular e outras coisas aleatórias que pensamos em pegar na correria. Calor, frio e pessoas indo e vindo o tempo todo. Emergência é emergência em qualquer lugar. E o Phil, ainda esperando diagnósticos, proibido de comer, mesmo depois do raio-x. Mais um médico e a suspeita sobre a pedra na vesícula fica mais forte - e depende de um ultrasom para ser resolvida. A parte engraçada é que a expressão "stones in the gall bladder" não significava nada para Mina e para Phil, já que "vesícula" não é uma palavra que se aprende no CCAA. E as inúmeras tentativas de traduzir a palavra no Google não funcionavam simplesmente porque não conseguíamos entender o nome do órgão em inglês (e como escrever). A solução foi a Mina até o médico e pedir, sem graça: "você pode escrever o nome do órgão para mim?".

Após a descoberta, começamos a pesquisa no Google pelo celular, para já saber do que se tratava. O soro continuava a toda, a fome aumentando e a enfermeira chinesa, que não cansava de pronunciar (e de maneira errada e irritante) a palavra "unfortunally", pronuncia mais uma vez para dizer a Mina que ela não poderia dormir ali (especialmente na cama improvisada no chão com um cobertor). E o desespero aumenta.

No meio da madrugada, Phil deixa a emergência em uma cadeira de rodas e vai para uma ala fria e escura, com nomes de lugares da região onde moramos identificando quartos e alas. Começa a sensação de estar em um filme de ficção onde zumbis devoram a cidade após uma epidemia. Chegando no quarto, um alívio: camas limpas e arrumadas, dois travesseiros, cômoda, ar condicionado, cortinas e profissionais de enfermagem atraentes chegando a pressão durante a noite. A manhã chega, as enfermeiras divertidas aparecem e Phil, mais aliviado, conhece seus companheiros de quarto. O filme de ficção se transformou em um seriado médico.

A enfermeira caribenha conta as aventuras sexuais com o espanhol que não falava inglês. O chinês da cama ao lado conta sobre as cirurgias que sofreu e explica a história de cada companheiro de quarto, inclusive o rabugento que não deixa as enfermeiras tirarem a pressão porque está no hospital há 9 meses e não vê mais sentido em ter a pressão medida a cada 4 horas. E nada de permissão para comer, o que faz as enfermeiras falarem a cada 2 horas: "vou checar se você já pode comer algo, pobrezinho".

Finalmente, o ultrasom é realizado e o médico, acompanhado por estudantes orientais de medicina altamente excitadas com tudo (e sendo mal-tratadas pelas enfermeiras) explica: não há pedras na vesícula. Uma crise muito forte de gastrite resultou em inflamação no estômago e infecção no sangue (a crise de gastrite foi agravada por, digamos, uma crise sentimental, mas isso é assunto para outro post). O tratamento é com antibiótico e pode ser feito em casa, já que a dor já havia diminuído consideravelmente. Finalmente, um prato de comida, acompanhado com olhares satisfeitos das enfermeiras e companheiros de quarto que não aguentavam mais o olhar faminto do rapaz que ali estava. E, quando Phil foi liberado, o chinês ainda pergunta, incrédulo: "você vai embora???". Deve ter sido a passagem mais rápida por aquele quarto - mas uma eternidade para alguém faminto e sofrendo de dor.

Vale mencionar que em nenhum momento foi pedido nenhum documento - passaporte, identidade, visto, absolutamente nada. O sistema de saúde inglês é entendido como sendo de direito de todos. E apesar das falhas na emergência, o serviço é realmente incrível, considerando que todos os remédios também foram fornecidos gratuitamente. E assim, nossos intrépidos viajantes vivenciaram um aspecto fundamental da vida por aqui e puderam documentar a experiência e dividi-la com nossos leitores.

Agora, afastando o assunto pesado - que ficou mais divertido agora que já, passou - finalizamos com o nosso tradicional diálogo:

- Phil, eu tenho sentido que a gente não tem tido tempo para conversar muito.

- Como assim, Mina?! A gente voltou ontem de ônibus conversando por mais de uma hora.

- É, mas... sei lá... a gente não tem conversado sobre tudo, sabe?! Sobre todos os assuntos.

- Mina... a gente está conversando sobre conversar.